Se a História é escrita pelos vencedores, a História Alternativa é escrita pelos inconformados. Esta foi uma frase proferida na abertura do primeiro Meeting Internacional de História ‘E se?…’ Universal, em Novembro de 2019, na Casa Comum da Reitoria da Universidade do Porto. Mas por provocação também poderiamos acrescentar uma frase popular de Talleyrand, que pode dar uma pequena reviravolta a este conceito: A traição é uma questão de datas[1].
Poucos tópicos há em que as pessoas sejam tão unanimamente concordantes como em afirmar que a traição é indesculpável. E logo a seguir começam a demonstrar os mil e um contextos onde ela, na sua opinião, são só é desculpável, mas razoável ou até de incentivar. A verdade é que pensamos sempre que a traição é indesculpavel quando somos nós os traídos e todos os outros adjectivos são para as situações em que nós somos os agentes da mesma. E que tem isto a ver com História Alternativa? A História Alternativa é uma traição aos factos. Não há realmente maneira de fugir a isso. Recusa-os, abandona-os por outros que lhe agradam mais, mesmo que sejam ilusões, ri-se dos mesmos com as tropelias e a humilhação a que os sujeita.
Na verdade, a perspectiva da traição, que é a que mais se coaduna com a História Alternativa pelo que já foi dito, é também a que a torna cada vez mais atraente. A traição depende não só de datas mas das audiências. E podiamos ser ousados e afirmar que as audiências fazem as datas. ‘E se?..’ só tem adesão quando alguém está preparado para achar a hipotese atraente. E as hipoteses disruptivas são atraentes quando estamos perante tempos disruptivos.
Quando a Monarquia do Norte se afirmou em 1919 contra a Republica Portuguesa, iamos a meio do tempo em que o virus influenza iria infectar cerca dum quarto da população mundial, de acordo com algumas estimativas. Garantidamente pelo menos cinquenta milhões de vidas humanas foram perdidas nessa pandemia, que ficou conhecida como Gripe Espanhola. E no combate ao inimigo invisivel, ainda se encontrou tempo para mais combates e combates fratricidas. Num texto que já vai recheado de citações e frases feitas, apetece acrescentar mais uma, e aqui vai ela, a de que nunca somos tão humanos como quando acrescentamos batalhas às guerras que já temos.
Neste caso, o tempo da Monarquia do Norte foi pouco mais que o tempo duma gripe normal, se tivermos em conta os maximos de incubação e duração. E tal como a mesma, facilmente foi esquecida assim que sanada. Os motivos serão vários mas, realmente, olhando para o século XX, a quem é que teria interessado divulgar, geração após geração, que tinha existido uma guerra civil portuguesa na Idade Moderna? Os vencidos não estavam interessados, o que é razoável, pois ninguém gosta de ser lembrado das derrotas, e os vencedores já nem pensavam no assunto, pois quem está interessado em assuntos arrumados quando há tanto a fazer?
Quem está interessado em relembrar traições? Sobretudo quando se pode levar a uma discussão sobre quem traiu quem?
A Invicta Imaginaria, em parceria com a Editorial Divergência, espera que muita gente esteja interessada não só em relembrar mas também em cometer umas quantas traições. O projecto Winepunk, que viu no ano passado a concretização duma primeira antologia, desde o início que programou três antologias, uma por cada ano de traição da Monarquia do Norte ficcional à Republica Portuguesa, uma por cada ano de traição deste universo alternado à realidade.
Recentemente abriram-se as submissões oficiais para a antologia do Ano Dois. Que traições se esperam que os autores cometam? E quais não serão perdoadas?
O Universo Alternado Winepunk tem algumas caracteristicas de génese e identidade. Tem uma duração enquanto realidade ficcional: três anos. Tudo o que estava antes na cronologia oficial da História mantem-se e tudo o que está depois, idem. Nesse entrementes, há uma cronologia oficial que tem de ser respeitada por quem queira escrever nesse universo e submeter para inclusão na antologia. Essa cronologia está disponivel online no blogue da Invicta Imaginaria, em inglês e português, desde 2013, indicando quais os eventos e personagens puramente ficcionais, quais os eventos e personagenes reais mas ajustados (por exemplo, evento real mas a acontecer um ou dois anos antes e/ou personagem real mas estando em Portugal na altura dos acontecimentos e não no estrangeiro).
Mais, tem uma opção tecnológica específica, o uso de vinho enquanto combustivel pela Monarquia do norte, recorrendo às leveduras S. monarchica, uma estirpe desenvolvida pelo cientista russo Mechnikov durante o seu apoio à Monarquia do Norte, de acordo com o canôn desse universo alternado. Algo que foi muito frutuoso, dadas as pipas de vinho do Porto à disposição dos monárquicos.
É de notar que pontualmemte podem-se considerar como passível de ser incluido no universo Winepunk – como aconteceu no caso da primeira antologia -, História Secreta no âmbito do universo Winepunk. O que quer isto dizer?
Tomemos como exemplo a tecnologia. A derivada do uso das leveduras é a oficial e a que deve ser usada no âmbito da cronologia. No entanto, um autor focou-se numa tecnologia vínica alternativa, tendo o cuidado de indicar no conto que a mesma era usada por um cientista rebelde, e algo ressabiado, que a teria proposto à Monarquia do Norte e a mesma ter sido preterida. Entretinha-se pois a utilizá-la à margem dos eventos oficiais da cronologia e do governo e da opção pública pela tecnologia vínica baseada em leveduras, mas (e isto é o fundamental) sem contrariar os eventos propriamente ditos. Oferecia, como é o caso da História Secreta, uma narrativa adicional ou uma explicação alternativa aos factos (alternativos ou reais) mas não os negava.
Outra possibilidade, usada por outro autor, é fazer uma sequela. De acordo com a cronologia winepunk, no terceiro ano da Monarquia do Norte, há uma cataclismo e toda a parte da Penisula Ibérica a norte do Rio Douro afunda. Com isto, a Monarquia do Norte desaparece do Mundo e da realidade, que retoma o seu curso conhecido e factual. Mas, é plausível que pessoas familiarizadas com a tecnologia vínica da Monarquia do Norte pudessem ter sobrevivivdo, por não estarem no território quando se deu o cataclismo, por exemplo.
Como tal, nos anos seguintes poder-se-iam assistir a retornos do uso dessa tecnologia, similar ou adaptada e histórias que se enquadrassem no Universo Winepunk, que é a soma da cronologia+conceitos tecnológicos. Novamente, desde que não haja uma contradição directa aos mesmos, isso pode ser aceite. Salvaguarda-se que sendo aceite, tal poderá ser preterido por histórias que apostam nos anos da cronologia dos três anos de História Alternada do universo Winepunk.
Então que se pretende para este segundo ano do universo Winepunk?
A primeira antologia focou sobretudo o ponto de vista da Monarquia do Norte. Agora é altura da Republica dizer de sua justiça. Lisboa e os seus aliados têm historias para contar, histórias do antes, durante e depois. Sobretudo histórias do como. Como enfrentaram a Monarquia do Norte e os seus engenhos mortíferos, saídos da imaginação e conhecimento do cientista Mechnikov. O que sentiram e porque lutaram. Quem eram. Quem foram.
No universo winepunk há duas polaridades, duas ideologias, duas geografias, duas culturas regionais. Duas vozes distintas. Queremos ouvir a voz do Sul.
E há tanto para contar, tanto para explorar, tanto para adicionar à cronologia do universo Winepunk. Sim, porque um conto, assim que seja aceite, passa a fazer parte do canôn oficial desta História Alternada e é incorporado na cronologia. Tal como os contos da primeira antologia e os seus eventos fazem parte agora da mesma e igualmente não podem ser contrariados.
Queremos traições à realidade, mas não à cronologia ficcional. Queremos saber das traições de cada lado, dos monárquicos que estavam em Lisboa e sentiram-se dividididos, dos republicanos que estavam a Norte e sentiam como seu dever ajudar a Republica a ser restaurada de norte a sul. Queremos o desbravar de novos aspectos esquecidos da Historia, real e factual, agora amplificados pelo tempo que não existiu. Por exemplo, os batalhões académicos, formados em Coimbra pelos estudantes para apoiar a República e enfrentar a Monarquia do Norte. Que histórias teriam eles a contar se a guerra tivesse durado três anos? E aqueles que sobreviveram, quer às batalhas, quer aos ajustes de contas, e que escreviam em jornais, vários anos depois ainda com mágoa e dor, como os arquivos nos mostram? Que teriam eles feito se tivessem mais tempo?
A traição que a História Alternativa faz à realidade, ironicamente, salva do esquecimento a riqueza de detalhes que compõe o significado da mesma.
O que esperamos dos nossos autores é a audácia da imaginação, o rigor das premissas, e a re-descoberta do que ficou ocultado. Só assim se podem perdoar as traições que vão cometer.
[1] “Isso, Senhor, é uma questão de datas”, em resposta ao Czar que criticara aqueles “que traem a causa da Europa”, e que é mais communte citada como “ A traição é uma questão de datas. Fonte: Oxford Essential Quotations (5 Ed), Susan Radcliffe Ed., current online version 2017, eISBN 9780191843730