“O Resto é Paisagem” – Antologia de Fantasia Rural

31 Ago 2018

Fora da urbe também o Fantástico existe e sobrevive. Nesta época de intensa desertificação do interior nacional, vale a pena imortalizar os seus cenários e mitos. Carlos Alberto Espergueiro, Daniela Maciel, Inês Montenegro, João Ventura, Lívia Borges, Pedro Galvão, Raquel Cal, Ricardo Correia, Rui Ramos e Simão Cortês são os autores desta antologia, coordenada por Luís Filipe Silva.

Brevemente, daremos a conhecer um pouco do percurso de cada um deles, agora que o lançamento da antologia se aproxima. Fiquem atentos a mais novidades.

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Extracto da ladaínha dos nossos tempos:

(Coro: ) É certo e sabido que Portugal é Lisboa e o resto é paisagem!

Que riqueza, população, indústria e institutos de saber se acotovelam no litoral, com o alívio de quem encontrou a saída do labirinto!

Que investimentos e progresso medram na faixa atlântica, de costas viradas ao excesso de nenhures e surdos ao canto do pesado silêncio do abandono!

Que há um inconfessado embaraço por aquele outro mar sem mergulho cujas ondas lentas e densas de pedra rochosa, se as tivéssemos navegado, jamais nos trariam a glória dos mundos dos Descobrimentos!

Que os maiores perigos sempre vieram daquela fronteira sem muro, por vezes esquecida, outras comprometida, na qual estranhos nos espreitam!

(Coro: ) Mas é certo e também sabido que as aparências são como os icebergues – inofensivas à distância, fatais no embate:

É impossível provar que já nada vive na aldeia.

É sensatez ir precavido ao se dobrar a esquina.

(Coro: ) A história de um lugar faz-se e mantém-se viva pelas gentes que o povoam, mas só enquanto o povoam:

Pois a terra sem boca não conta o que presenciou.

Os vales profundos esconderão enfim os derradeiros vestígios da raça humana.

Os sobreiros ascenderão, viçosos e rijos, sobre a decomposição dos últimos a morrer.

E o sol consumirá a cal das paredes, derrubará as telhas e secará as vigas do que foram berçários e cozinhas e quartos de uma vida.

(Coro: ) Descobri assim em palavras as histórias do que não será de outro modo contado, as histórias que se escondem entre as linhas das histórias banais:

De tempos que não foram e jamais chegarão a ser.

De grandes feitos esquecidos que o desígnio político, a traição mundana ou um grande despeito divino enterrou.

De gentes que são fantasmas para os fantasmas que ali não estão.

De portas que só existem no reflexo dos espelhos e vielas nas quais se entra às arrecuas.

De lugares onde é sempre dia e sempre noite e sempre nunca.

(Coro: ) Histórias que poderiam ser as vossas mas contadas por outros:

Pois não tereis vivido estes dramas (que não vos largam).

Nem rido com possíveis comédias, nem compartilhado o terror das vítimas.

Histórias fugazes, quanto muito – que esvoaçam ao acordar, produtos de algo que dizeis (tolamente) ficção.

Histórias que em nada são as das cidades, as das ruidosas, caprichosas, ridículas cidades, crianças convencidazinhas da sua importância.

Mas que também não são lendas nem fados nem crendices, mas engodos e jogos de sombras que tapam a verdadeira verdade.

Histórias passadas de geração em geração, e neste passar, o nome que muda, a explicação que se omite, a desculpa que se inventa.

Tornai-vos fiéis testemunhas, atentas ao ardil debaixo da memória atrás do facto.

As histórias ardem nos dedos que, escravos, escrevem.

(Coro: ) Entrar neste Portugal implica esvaziar o espírito, atravessar a barreira da compreensão, ir além do além:

Desconfiar que no olhar manso do gado se esconde um mal antigo e inteligente à espera do momento certo.

Descodificar a mensagem insistente, repetitiva e enlouquecedora dos grilos quando cai a noite.

Hesitar diante da cerca derrubada e aparentemente esquecida.

Medir o comprimento real das horas e a duração dos dias, contra a leitura dos subversivos instrumentos do Homem.

Lutar contra o torpor que vos fez esquecer o porquê da viagem, o local do vosso destino, o rosto do vosso parceiro.

Tentar sempre, e antes de tudo, partir – se possível.

(Coro: ) Estão acolá, no fim do horizonte, ora tapadas por uma colina, ora cobertas por uma nuvem, estas terras, estas histórias:

Passam lentamente enquanto o carro dispara alucinado na autoestrada, querendo escapar a quem já o apanhou.

Vivem no canto do vosso olhar.

Alimentam-se do bater do vosso coração.

Sufocaram as vozes que um dia se fizeram ouvir nas ruas, nos caminhos, entre casas e janelas, desta aldeola abandonada.

(Coro: ) Eis o Portugal que foi e que será, embora sonhe um sonho de modernidade alheio.

O Portugal só vosso.

Entrai então nas dez portas que vos oferecemos. Uma a uma, como manda o preceito, inspirando fundo, ajustando o xaile e a gola do capote, puxando a boina sobre os olhos, baixando a vista e murmurando a prece escutada ainda em vida pelos lábios dos moribundos – a prece repetida no campo, no antigamente entretanto calcado para o fundo da memória pela patina dos novos tempos –, sem esquecer de entregar à guarda da recepção telemóveis, relógios e brinquedos que perturbassem aqueles que não convém incomodar.

Entrai, enfim. Verão que nada mudou, nada se encheu de luz, que é delírio breve e fugaz este suspiro de civilização.

O mal que havia, continua como dantes: intocado, ignorante, raivoso.

Tem dormido num sono agitado para recuperar forças.

Quando se remexe e estremunha, os seus efeitos sentem-se no mundo.

Sinal de que já começou a acordar.

 

Luís Filipe Silva